quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

.o amor acaba.

"O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de 
cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas 
sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não 
floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no 
trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o 
amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fosse melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba".

Paulo Mendes Campos. 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Lu.

Vi você renascendo inúmeras vezes
Chorei em algumas delas
Renasci junto em muitas

Te vi perdida
Como eu
Apaixonada
Como eu
Bêbada
Como eu
Chorando desesperada
Como eu

Vi quando você olhava com olhos de
"não é esse"
E, será alguém, algum dia?

Agradecemos juntas pela beleza da vida
E choramos em diversas vezes pelo passado

E eu estava lá
Quando ele nasceu
Tão pequeno e tão enorme
Tão cheio de amor
Pra receber
E pra doar

E você estava lá
Esperando na porta
Com o carro aberto
E minha mala cheia de confusões

Elas não passam, né?
As confusões
As despedidas
E
mais fundo ainda:
o amor.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Romulo

Tenho pensado muito em você, meu amigo.
Dia desses, organizando os livros, encontrei os seus. Todos lindamente autografados, com meu nome escrito no começo e o seu assinado ao final.
Sua letra me deu um misto de tristeza e alegria.
Até hoje lembro da sua casinha no Boa Esperança, com cheiro de café e amontoados de livros escritos e feitos por você. Você fez seus primeiros livros. Trabalho manual e intelectual invejável.
Lembro de um bem pequeno, com folhas que lembram papel de pão.
Aliás, nem tem mais aqueles papéis por aí. Tem? Eu não sei. Também não compro mais muito pão.
Você saiu de sua cidade, mas de alguma forma, Minas nunca saiu de você.
Não consigo parar de chorar. Alguns dias são mais cinzas que outros, Romulo. Mas é mais ainda difícil quando parte da sua cabeça é muito cinza por dentro.
Folheio os livros.
Gosto daquelas páginas amareladas.
Sorte existir Ramon em nossas vidas. Na sua vida.
Nosso último encontro foi tão rápido. Só peguei o livro, tirei uma foto e logo me fui.
Tenho saudade de você aparecer por aqui e escrever pra mim.
Tanto que só estou conseguindo escrever pra você passado tantos meses. Anos.
Confesso que não é fácil seguir escrevendo como me pediu.
E ainda dói saber que você não me lê mais.
Ou,
quem sabe
me lê.

Me avise: por aí você tem escrito? O céu é mesmo tudo que contam? Ou você resolveu ir para outro lugar?


Isa.


PS: Tenho certeza que o paraíso é dentro da cabeça da gente.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

tenho substituído

há dias não consigo tirar um texto de mim
penso em tudo
te li inteira
te vi
senti

mas nada sai

você
gosto de café
ovos mexidos
e amor

você
cor de sol
cheiro de mar
força da natureza

tento escrever
não sai nada

penso diariamente
não tem palavra
memória falha

respiro fundo
fecho os olhos
escuto músicas
lembro de nós

mas não sai nada

você
toque suave
dedos finos
pernas longas

tento escrever
tento
tento
não sai nada

você
me tirou as palavras

e, desde então,
tenho substituído por saudades.