quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Tenho vontade de me sentar na beirada e deixar as ondas invadirem meus dedos e depois tomar conta dos meus pés, calcanhares, panturrilhas e, então, me puxar para dentro de si. Tenho vontade de fazer da água moradia e não reconhecer mais se um dia fui esse corpo solto na terra, que hoje já não se reconhece mais de lugar algum, ou se tudo não passou de um pesadelo - isso da convivência com corpos alheios. 

Tenho vontade de não precisar mais tentar encaixar minha vida na vida que pedem pra que eu tenha. Quero ser água. Enxurrada que não se adapta, mas destrói tudo que vê pela frente. Quero, contraditoriamente, ser água pra caber em locais que me disseram que não poderia, só pelo prazer de dizer que estavam errados. 

Quero ser água, ganhar novas formas, responder a todas elas de maneira diferente. Evaporar. Desaparecer. 

Mas não me deram de ser água. 

A vida, essa que te metralha de todos os lados, me mostra que sou terra: estou em todos os lugares mas em nenhum me encaixo. E, mesmo que quisesse, de mim não me mudo. Sou fixa. Estou fixa. O fogo me machuca. A água também me fere. O ar me põe em lugares que não queria. 

Sou terra e ser terra me dói. Estar viva me dói. Saber-se viva, mas não demasiadamente viva, me fere. 

Há quem diga que possa renascer. Que isso é viver: jogar adubo, fertilizante, sementes, amor. Mas sinto que essa terra é selvagem e talvez ela tenha nascido pra nada dar. Aqui não nascem flores, não há raiz que se encaixe profundamente a ponto de se tornarem, raiz e terra, tão unas que não se saberiam ser diferentes. 

Aqui não há nada. Não nasce nada. E tem vezes que este nada parece a pergunta e a reposta. E nunca parece bastar. 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

 

Como tristezas em domingos chuvosos

Como a alegria retirada pela despedida abrupta

Como quando se olha frestas que não deveriam ser espiadas

Como quando a inocência é roubada

Como quando a solidão invade uma sala cheia

Como quando se deixa de acreditar em deus

Como quando o bolso está vazio

Como quando a música continua em um salão sem almas 

Como quando não sem mais nem porquê

Como quando fica o sangue retido na pele rasgada

Como quando o espelho quebrado te mostra o lado de dentro

Como quando

Finalmente

A chuva cessa

Aqui dentro

E lá fora

 

Como quando

De repente

O cinza vira azul

 

Como quando nada disso fazia sentido amanhã

E continuará não fazendo ontem

 

Como quando o jogo de palavras é a adivinhação do leitor

E o verbo cala quem escreve o que não deveria ser dito

 

Como quando o se fazia sentido

E hoje é vento soprando a ideia

Vento soprando a ideia.

sábado, 5 de dezembro de 2020

futurolândia

 


tão feridos

(h)à procura de respostas 

desencaixados

absortos em suas dores 

temendo encontrar novos olhares

sem antes terem a chance de mirarem para si


machucados

sangrando 

carnes vivas 

carnes doces

mal passadas 

outros amores


tão feridos

judiados

perdidos entre a luminescência do céu e a escuridão deles próprios 


escondidos 

usando a carapuça de duros


medrosos

temendo o futuro


há futuro? 

ah! FUTURO

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

gato preto

Quando eu era criança achava que, na verdade, eu era um gato 

Um gato preto 

Que de vez em quando estava no meu corpo de criança e enxergava a vida de camarote, pela ótica de um gato 

Era confuso 

Mas trazia conforto 

Eu não precisava crescer pra adolescente 

Eu não precisava crescer pra adulto

Um gato era um gato 

Eu não teria problemas com minha mãe 

Não teria grandes dificuldades em viver

Vez ou outra, se fosse fêmea, seria perseguida por machos 

Se macho fosse, teria brigas na rua e talvez o rabo ou uma orelha machucados 


Mas eu não era um gato 


Eu tive que enfrentar o desamor da minha mãe 

Tive que aprender que eu era sensível demais pra um mundo cruel e duro demais

Tive que aprender a conter choros

(Hoje não os contenho tanto assim)

Tive que sair de casa sem olhar pra trás 

Tive que fugir de pessoas

De sentimentos 

De machucados

E tive também que suportar as cicatrizes 

Tive que superar as despedidas 

Tive que me olhar no espelho e lembrar quem eu sou

Uma vez que essas tantas pessoas que passaram por mim me fizeram esquecer minha identidade 

Ou talvez elas não tenham feito nada

Talvez tenha sido eu que não me queria amar suficientemente bem pra deixar me levar 


E como me deixei levar 


Mergulhei sempre profundamente

Querendo tocar o fundo de pessoas que minha altura de 1,58 não permitia 

Queria chegar laaa no fundo da cachoeira, mas as águas eram turvas e sempre parecia não haver fundo 

Talvez não houvesse

Ou talvez não fosse pra mim


Eu não acho mais que era um gato preto 

E já não sei mais como lidar com tudo

Aliás

Acho que eu nunca soube de fato

A pergunta que me faço, vendo a minha figura triste no espelho, é: 

Saberei algum dia? 


Eu não acho mais que eu era um gato preto

Mas têm dias que eu queria continuar achando que sou

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

poema sem lugar

Eu sou de um lugar que não mais existe
Onde nasci, sequer fiquei
Onde cresci, os terrenos cheios de verde e vida foram aos poucos sendo substituídos por concretos e tristezas
Histórias foram construídas onde antes o vento passava leve e os pés de mamona cresciam selvagemente
Eram aquelas as mesmas mamonas que brincávamos em guerras imprudentes
A rua, de chão batido e que nos deixava da cor da terra, foi aos poucos dando lugar a uma outra tonalidade acinzentada
Chamavam aquilo de progresso, mas lembro de ser apenas asfalto quente e duro, que ralava nossos joelhos e trazia o vermelho-sangue à tona
Eu sou de um lugar que não mais existe
Tudo foi sendo aos poucos substituído
Da memória que busco vez em quando, nada sobrou
Saudade é um naco de apagamento: nada do que se lamenta ter passado existe em outra dimensão
Tiraram as árvores
Tiraram a terra
E, a cada retirar, o sangue também foi dando lugar ao nada
Eu sou de um lugar que não mais existe
E esse lugar é agora

quarta-feira, 27 de maio de 2020

faz tempo que por aqui não apareço
sinto minha pele algumas vezes como casco de jabuti: endurece, endurece, endurece
mas é casa

tenho vivido dias sem saber exatamente o que significam
leio e-mails antigos esperando notícias novas
morro por amor todos os dias e ainda continuo viva,
sem saber se respiro mesmo ou se já morri

meu avesso é encolhido
e tento esticá-lo pra ver se ainda vai caber em mim um dia
me abro a pessoas que não se importam
me fecho pra quem me escolhe

sou tão fácil de ler e ao mesmo tempo impossível de decifrar
vacilo
tropeço
mergulho
afundo