quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

gato preto

Quando eu era criança achava que, na verdade, eu era um gato 

Um gato preto 

Que de vez em quando estava no meu corpo de criança e enxergava a vida de camarote, pela ótica de um gato 

Era confuso 

Mas trazia conforto 

Eu não precisava crescer pra adolescente 

Eu não precisava crescer pra adulto

Um gato era um gato 

Eu não teria problemas com minha mãe 

Não teria grandes dificuldades em viver

Vez ou outra, se fosse fêmea, seria perseguida por machos 

Se macho fosse, teria brigas na rua e talvez o rabo ou uma orelha machucados 


Mas eu não era um gato 


Eu tive que enfrentar o desamor da minha mãe 

Tive que aprender que eu era sensível demais pra um mundo cruel e duro demais

Tive que aprender a conter choros

(Hoje não os contenho tanto assim)

Tive que sair de casa sem olhar pra trás 

Tive que fugir de pessoas

De sentimentos 

De machucados

E tive também que suportar as cicatrizes 

Tive que superar as despedidas 

Tive que me olhar no espelho e lembrar quem eu sou

Uma vez que essas tantas pessoas que passaram por mim me fizeram esquecer minha identidade 

Ou talvez elas não tenham feito nada

Talvez tenha sido eu que não me queria amar suficientemente bem pra deixar me levar 


E como me deixei levar 


Mergulhei sempre profundamente

Querendo tocar o fundo de pessoas que minha altura de 1,58 não permitia 

Queria chegar laaa no fundo da cachoeira, mas as águas eram turvas e sempre parecia não haver fundo 

Talvez não houvesse

Ou talvez não fosse pra mim


Eu não acho mais que era um gato preto 

E já não sei mais como lidar com tudo

Aliás

Acho que eu nunca soube de fato

A pergunta que me faço, vendo a minha figura triste no espelho, é: 

Saberei algum dia? 


Eu não acho mais que eu era um gato preto

Mas têm dias que eu queria continuar achando que sou

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