a minha casa não é mais a casa de bonecas da infância.
não pego cada pessoa com as mãos e invento estórias e personagens.
não subo escadas
não tomo chás de mentirinha
nem abro a cristaleira rosa fingindo pegar uma taça de vinho ou de champanhe, nas raras ocasiões especiais.
não tenho se quer cristaleira e mesmo que a tivesse certamente o rosa teria ficado no passado em que meninos tinham sempre que levar refrigerante e meninas salgadinhos.
não, não defino minha vida entre rosa e azul. às vezes simplesmente nem há cores.
não troco a roupa das minhas bonecas, digo, personagens, como se fosse a coisa mais importante do dia
nem refaço diariamente a cena de beijos e amor dramatúrgico que um suposto Ken tinha com uma Barbie tão fora de qualquer padrão corporal existente.
não há mais amor no meu passado e nem cenas picantes de amor no meu presente.
aliás, que tipo de amor uma criança empunhando bonecas de plástico fingia existir?
que amor seria esse de dormir junto em caminhas de madeira tão bem talhadas?
a minha casa era maravilhosamente linda, tenho que dizer.
feita rigorosamente a meu gosto e vistoriada madeira à madeira pelo meu pai.
ele, inclusive, se enciumava quando em meu lugar entrava alguma prima distante querendo mudar a estória de vida dos meus personagens - para elas tanto fazia quem era o casal, de repente, haviam trocas que eu nunca imaginaria em sã consciência. não! meu pai tinha razão: na minha estória ninguém podia mexer. era minha e ponto.
porém, tive que fingir aprender a lidar com pessoas e deixar as bonecas
confesso, não por não poder pegar as pessoas e inventar falas, abraços, beijos, sonos profundos e divididos, mas sim por não poder simplesmente trocar uma roupinha qualquer.
viver é mais complexo e mais duradouro, por mais que as minhas bonecas estejam todas em alguma estante do meu passado, viver é tão duro quanto ver a casinha de madeira ter sido transformada em um depósito imenso de tralhas sem serventia alguma.
não tenho desejos de manipular, não tenho desejos de moldar, mas confesso, tenho desejo de ser abraçada por quem desejo que me abrace. e não posso.
acho que uma prima distante revirou minha história: eu, uma boneca deformada pelo tempo, perdi espaço para uma nova sensação da estrela, mais nova, com a bunda mais empinada, a cabeça menos atordoada, a simplicidade mais aflorada - um super lançamento.
e entendo.
mas entender de forma alguma significa sofrer menos.
a minha casinha virou pó. e até para o pó há solução: com um pano molhado vai embora e, se volta, nada como a boa insistência do pano. alterne, panos secos e molhados e sempre terá a poeira indo embora. (mas de algum modo ela volta, não é?)
não sei que tipo de amor era aquele entre o casal de bonecos. não consigo lembrar de onde vinha um amor tão dilacerante, tão fortemente bonito, tão veementemente abraçável. tão carinhosamente amado. era amor. era simplesmente amor. ou não era.
gostaria de subir escadas
de tomar chás de mentirinha
de, só por hoje, abrir a cristaleira para tomar champanhe
e depois, bem depois, de comemorar um amor de seres tão pequenos como bonecos de forma tão grande como eu, criança, imaginava.
só por hoje queria me reduzir para caber na caminha de madeira tão bem talhada. só por hoje queria ficar pequena para amar grande.
e saber que mesmo sendo uma boneca deformada pelo tempo que ele, meu boneco de plástico, me amasse dessa mesma forma. que não visse em mim um poço do que tenho sido, mas um monte de coisas que já fui e que continuo querendo ser: hoje, simplesmente me abrace e me minimize para eu crescer.
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