Quando eu era criança achava que, na verdade, eu era um gato
Um gato preto
Que de vez em quando estava no meu corpo de criança e enxergava a vida de camarote, pela ótica de um gato
Era confuso
Mas trazia conforto
Eu não precisava crescer pra adolescente
Eu não precisava crescer pra adulto
Um gato era um gato
Eu não teria problemas com minha mãe
Não teria grandes dificuldades em viver
Vez ou outra, se fosse fêmea, seria perseguida por machos
Se macho fosse, teria brigas na rua e talvez o rabo ou uma orelha machucados
Mas eu não era um gato
Eu tive que enfrentar o desamor da minha mãe
Tive que aprender que eu era sensível demais pra um mundo cruel e duro demais
Tive que aprender a conter choros
(Hoje não os contenho tanto assim)
Tive que sair de casa sem olhar pra trás
Tive que fugir de pessoas
De sentimentos
De machucados
E tive também que suportar as cicatrizes
Tive que superar as despedidas
Tive que me olhar no espelho e lembrar quem eu sou
Uma vez que essas tantas pessoas que passaram por mim me fizeram esquecer minha identidade
Ou talvez elas não tenham feito nada
Talvez tenha sido eu que não me queria amar suficientemente bem pra deixar me levar
E como me deixei levar
Mergulhei sempre profundamente
Querendo tocar o fundo de pessoas que minha altura de 1,58 não permitia
Queria chegar laaa no fundo da cachoeira, mas as águas eram turvas e sempre parecia não haver fundo
Talvez não houvesse
Ou talvez não fosse pra mim
Eu não acho mais que era um gato preto
E já não sei mais como lidar com tudo
Aliás
Acho que eu nunca soube de fato
A pergunta que me faço, vendo a minha figura triste no espelho, é:
Saberei algum dia?
Eu não acho mais que eu era um gato preto
Mas têm dias que eu queria continuar achando que sou